Caio de Andrade mistura fatos reais da trajetória brasileira a um rol de personagens fabulosos. Em Os olhos verdes do ciúme e Deserto iluminado, o fim do Segundo Reinado e o nascimento da Capital Federal emolduram textos que embaralham figuram como D. Pedro II e Isadora Duncan a tipos por ele criados, fabricando mundos deliciosamente conflagrados. Agraciado ou indicado às maiores distinções direcionadas à dramaturgia brasileira (Prêmios Governo do Estado, Shell, Maria Clara Machado, entre outros), vem consolidando sua carreira como um dos mais inventivos e prestigiados dramaturgos de sua geração.
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Não sei meu CEPTítulo: Os olhos verdes do ciúme / Deserto iluminado
Escritor: Caio de Andrade
Ilustrador: Alexandre Camanho
Designer: Adriana Campos
Editora: Passarinho
Páginas: 144
Acabamento: Brochura
Formato: 14 x 21 cm
Texto de apresentação: Larissa Bracher
Conheci o Caio em Buenos Aires quando lá morávamos a trabalho. Não precisaria termos passado o ano inteiro daquele 2000 pra perceber que o que nos unia não era consequência de uma típica carência de compatriotas em terra estrangeira e, sim, o prenúncio do que viria a seguir.
Nós nos despedimos prometendo manter no Brasil aquela forte amizade e o desejo de inaugurarmos uma parceria profissional. O que não imaginava é que a partir dali seria impossível falar da minha própria vida sem falar do Caio, e isso me emociona até hoje.
Eu me lembro com facilidade – como se não tivessem se passado esses vinte anos – das primeiras palavras de Os olhos verdes do ciúme, escritas pra mim, num daqueles computadores grandotes que nem existem mais. Nos rascunhos da primeira sinopse, Caio já anunciava a grandeza de seu talento e estilo que iriam singularizá-lo na dramaturgia nacional.
Nada como o tempo para nos dar novas e plásticas dimensões sobre nossas experiências pregressas, e hoje não hesito em afirmar que este projeto foi um daqueles raros acontecimentos cênicos onde tudo é auspiciosamente animador: o encontro humano, as críticas elogiosas, o boca a boca, a mídia espontânea, indicações a prêmios, turnês, editais, tudo enfim parecia ter caminhos abertos como que predestinado ao vitorioso desfecho.
Com o fértil Os olhos verdes do ciúme nasciam juntos no tempo o Caio de Andrade, como premiado autor e diretor; eu, como atriz e produtora teatral aos 22 anos (um feito possível somente porque havia ali o saudoso trio Silvia Rezende, Regina Monteiro e Caio, grandes e dedicados tutores); o Teatro do Centro Cultural da Justiça Federal, CCJF, inaugurado em ocasião da nossa estreia, a 14 de setembro de 2001 (apenas três dias após os atentados às Torres Gêmeas); um grupo coeso e fraterno de atores, técnicos e criadores que escolheriam seguir juntos por muitos projetos mais; além de um estilo teatral que traria uma pesquisa estética e de linguagem baseada na História do Brasil, sempre presente na obra de Caio.
Os olhos verdes – como carinhosamente chamamos – é um belo exemplo deste teatro inaugurado por Caio em Uma aventura carioca, onde sua verdadeira paixão pelos séculos XIX e XX o faz percorrer – com verves machadianas e azevedianas – um Rio de Janeiro imperial ou recém-republicano, afrancesado, dos chás, dos cabriolés e pince-nez, da Rua do Ouvidor, dos chapéus e anquinhas, como se em algum lugar de seu espírito Caio reconhecesse uma vida experienciada ali, tamanha sua intimidade com a vida cotidiana dessa época.
O dramaturgo é o escritor que tem o privilégio, ou a sina, de levantar em 3D seus personagens imaginados. Essa é outra proeza de Caio, escrever pensando para o ator no palco, com a cabeça imagética do diretor, arquitetando prodigiosamente o timing até das trocas de figurino. E o faz magistralmente. Ele escreve como um encantado pelo teatro, e talvez por isto mesmo, dialeticamente, seja também um deleite lê-lo, em livro, uma vez que tudo ali, naquele texto, é criado para ser vivo.
Tive a honra de fazer algumas de suas prismáticas personagens femininas. Fui sua Fiona Grennhill (em Os olhos verdes e anos depois em Geringonça), essa ardilosa e divertida chefe da “Valente e Carijó” – falida companhia teatral – que manipulava sua trupe para praticar extorsões e sanar suas dívidas. Fui a doce Amália em Deserto iluminado, jovem dividida entre as obrigações de uma esposa dedicada e a liberdade trazida por seu encontro com Isadora Duncan. Em seguida, tive o privilégio de fazer sua desafiadora Antygona, que com frases sintéticas e absolutamente poéticas havia de ser capaz de transmitir as angústias e decisões desta enigmática personagem trágica.
Caio é um ser do teatro e da cultura. Quem tem o privilégio de conviver com ele demora pouco tempo para se aperceber disso. Um artista entusiasta, ardoroso do ofício. Precisamos de arrebatados amorosos como ele para reequilibrarmos as forças do mundo. Necessitamos sempre pender para a arte – esse amor indizível à existência – que de tempos em tempos nos oferece um Caio de Andrade.
A ele devo tanto de mim. Como pessoa, atriz, produtora e educadora. Obrigada, Caio.
Agradeço também a Marcello H., companheiro de jornada, compositor das trilhas de Os olhos verdes, Geringonça e Rockantygona, sem o qual não teria realizado todos estes projetos, e à Bel Cabral, nossa eterna operadora de som que nos deixou esta semana, antes de podermos comemorar estes vinte anos de estreia. Feliz por vocês, novos leitores, alunos e espectadores dessas obras. Que estes textos e personagens encontrem lugar em seu coração assim como fizeram morada no meu.
TERCEIRO SINAL, O ESPETÁCULO VAI COMEÇAR!
Larissa Bracher, atriz
“Havia nela tanta modéstia e recato, (…) que o ciúme dele podia dormir com as portas abertas.”
(Machado de Assis – Relíquias de casa velha)
Foram as cartas trocadas entre D. Pedro II e a condessa de Barral, durante quase trinta anos, que me levaram a escrever a peça Os olhos verdes do ciúme. O “ciúme” do título, no entanto, nada tem a ver com o amor sublimado que o imperador e sua fiel serviçal viveram ao longo de suas separadas existências – ela, na França, ele, no Brasil. Conviveram pouco mais de oito anos, quando a condessa veio assumir a educação das princesas Isabel e Leopoldina, a primeira destinada a ocupar, futuramente, o trono do Brasil como imperatriz. A Barral, como era chamada, achava- -se nas condições ideais para o cargo. De 1856 a 1864, demonstrou uma dedicação intensa, dando conta aos imperadores de tudo que dizia respeito às suas pupilas, tanto no que se referia a sua instrução quanto a sua educação e saúde.
Enquanto educava as princesas, a condessa exerceu verdadeira fascinação sobre D. Pedro. A graduada serviçal conquistou o imperador por sua elegância, sua inteligência incomum, seu espírito atilado e suas conversas sobre as obras científicas e literárias que tanto encantavam o governante. Ela não o admirava menos. Admiração mútua que culminou em discreto, profundo e proibido amor. Em 1864, ano do casamento das princesas, deixando de existir a razão que a prendia ao Brasil, D. Luisa Margarida Portugal de Barros – condessa de Barral e Pedra Branca – fixou residência na França. Começa então uma intensa troca de correspondência entre a condessa e o imperador, que duraria até 1891, ano da morte de ambos – a dela em janeiro, a dele em dezembro.
O “ciúme” que nomeia a peça e estimula os conflitos de minha história inventada nasceu do amor bélico e fictício da atriz inglesa Ethel Havelock pelo belo aristocrata Horace Dominique. No meu texto, a balzaquiana e atormentada atriz – envenenada pelo ciúme – tenta resgatar a paixão deixada no passado por seu jovem amante, que a trocou por uma união arranjada e conveniente. Munida de perigosa dose de vingança – que brota com facilidade do coração enciumado –, Ethel tenta destruir o casamento de Dominique, na tentativa desesperada de reviver seus dias felizes.
Pedro e a Barral, Ethel e Dominique – uma história nada teria a ver com a outra se Dominique não fosse, “na vida real”, filho da condessa e se o objeto de chantagem usado por Ethel para reconquistar o seu amado não fosse – aí dentro da ficção urdida por mim – parte das cartas que a condessa recebia do imperador e que, graças a uma fatalidade, caíram nas mãos da atriz. Documentos que poderiam destruir a impoluta e, até então, inabalável reputação do sensato soberano, homem ilibado e extremado pai de família. A trama corre por aí: Ethel, movida pelo “monstro de olhos verdes” – alcunha elegante do velho e birrento ciúme –, tenta fazer com que Dominique reconsidere sua decisão de viver somente para a esposa, enquanto ameaça revelar para jornais sensacionalistas, por meio de dois ardilosos cúmplices, Fiona Grennhill e Tibério Fonseca, o amor secreto e resignado da mãe de seu amado pelo imperador do Brasil.
Na realidade, o amor de D. Pedro permaneceu secreto até o ano de 1948, quando o marquês de Barral, neto da famosa condessa, descobriu parte das cartas, no castelo da família. Na ficção, a indiscreta relação também fica resguardada, uma vez que Ethel, arrependida de seus ardilosos planos, devolveu as missivas para Dominique.
Lendo a famosa correspondência – algumas cartas estão no Museu Imperial de Petrópolis –, percebemos que a profunda afeição nascida entre D. Pedro e sua fiel amiga veio ao mundo sem o vírus do ciúme. Amor nascido da admiração e do respeito quando ambos já estavam em plena maturidade, compromissados e carnalmente fiéis aos seus respectivos cônjuges, ao que parece souberam driblar as armadilhas da paixão, transformando o radiante encontro em platônica e “inventada” convivência, uma vez que moravam em países diferentes. Algumas folhas, no entanto, revelam que, muito mais tarde, ao se encontrarem sozinhos em Atenas – ela já viúva e ele desacompanhado, uma vez que a imperatriz estava fazendo tratamento de saúde, na Alemanha –, não resistiram e acabaram por consumar o romance, deixando marcas, nas entrelinhas, de um possível envolvimento carnal.
O fato é que, se alguma palavra ou sentimento fosse usado para simbolizar tão duradouro afeto – durou quase trinta anos –, não seria “o ciúme”, talvez “a saudade”. Num trecho de uma das cartas, diz o imperador: “Que saudades de Atenas e de todos os lugares onde estivemos. Você não imagina a vida que levo agora. Esta carta parte amanhã toda impregnada de saudades”. Já em outra: “Você faz-me muita, muitíssima falta. Quem me dera agora uma de nossas boas conversinhas! Que saudades e insistentes lembranças de nossas conversas áticas! É preciso descansar sonhando!”.
Por algum motivo, no entanto, achei que a comovente – talvez insossa – história vivida por nosso soberano e sua discreta amada não seria suficiente para urdir uma trama. Foi quando apareceu o “ciúme”, sempre alerta e belicoso, pronto para contaminar as relações, descortinando possibilidades, abrindo e camuflando armadilhas, transformando ingênuas damas em ardilosas amantes, gentis cavalheiros em pecaminosos suspeitos, doces histórias de amor em jogos de sórdidos interesses. Touché!
Talvez seja essa grande quantidade de confeitos – coloridos e calóricos – que faça do ciúme iguaria tão suculenta e proibitiva. Ingrediente insubstituível na receita de qualquer história que se quer picante, escandalosa, muitas vezes, indigesta.
Parceiro da traição, da loucura, do sofrimento, no mundo real o ciúme ainda causa estragos. Mesmo depois da psicanálise, do feminismo e de importantes conquistas no campo das liberdades individuais, o ciúme resiste. Dizem que ele já pode ser adestrado, que existem “instrumentos contemporâneos de administração do ciúme”. Como só concebo o ciúme na ficção, confesso que o prefiro no original: atormentado, descontrolado, corrosivo, manchando com sangue as páginas da vida, da vida de papel.
– Caio de Andrade
“É uma bela mulher, de aparência altaneira, Que deixa mergulhar no vinho a cabeleira (…)”
(Charles Baudelaire – As flores do mal)
A imagem do poema de Baudelaire poderia ser o espelho da cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX. Uma mulher exuberante, embriagada de modernidade, vivendo uma espécie de “euforia de superfície”, inebriada de beleza e frivolidade. As transformações implementadas pelo governo Rodrigues Alves, impulsionadas pelas obras de Pereira Passos e Paulo de Frontin – iniciadas em 1902 –, provocaram uma profunda metamorfose na vida carioca.
Nossa peça se desenrola em 1916, dez anos depois das “grandes inaugurações”. O Rio que João do Rio nos retrata em suas crônicas é uma cidade de contrastes: mistura os últimos tílburis com os primeiros automóveis; uma seresta no morro de Santo Antônio com a inauguração do Clube de Regatas Flamengo; as vielas lúgubres onde moravam os chineses fumadores de ópio com o corso elegante na Praia de Botafogo.
Essa atmosfera buliçosa, irrequieta e trepidante atiçou nosso Jean Lorrain dos trópicos. João do Rio tinha inúmeras semelhanças com o escritor francês que retratou Paris no início do século passado. Ambos interessavam-se por personagens retorcidos e perversos, surpreendidos na atmosfera febril do demi-monde e do bas-fond das duas cidades que representavam.
O senso de desarmonia que impera na obra do grande jornalista inspirou-me a escrever Deserto iluminado. Fiquei imaginando como a vibração de um sem-número de novidades poderia descontrolar a vida de uma burguesia contaminada pelo vírus da imitação; do eterno fascínio pela Europa, ainda que em tempos de guerra. Uma guerra que empurrava algumas das grandes celebridades da arte para a América, impedidas que eram de brilhar em meio a bombardeios e destruição.
Pensei em como uma mulher como Isadora Duncan, que parecia cortejar tanto a tragédia quanto o triunfo, ao lado de uma personalidade tão rascante quanto a de João do Rio, poderia impingir reformas tão transformadoras e decisivas na vida de algumas pessoas, quanto as que nossa cidade sofreu durante o período em que as duas celebridades se encontraram.
– Caio de Andrade